segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

A cama do sr. Amâncio


Ilustração de Danielle Joanes

Um amigo seu, que mora em outra cidade, te convidou para ir na festa de aniversário dele. Como a cidade fica muito longe, você acaba tendo que dormir por lá. No quarto de hóspedes tem uma cama sobrando e você descansa lá até o dia seguinte.

Simples não? Se você ainda não passou por essa situação, certamente passará. Caso não tenha uma cama sobrando, sempre tem um sofá ou colchão amigo para quebrar o galho. Bem, na São Paulo do século XVII a coisa não era bem assim. Aliás, era muito, mas muito diferente.
Em 1620, chegou em São Paulo o sr. Amâncio Rebelo Coelho, que era ouvidor geral das cortes portuguesas. O cargo de ouvidor era um dos mais importantes do país, afinal de contas, a pessoa que exercia essa função era escolhida diretamente pelo rei. Uma das obrigações do ouvidor era ir até as vilas verificar se estava tudo em ordem, se não havia nenhum crime que estivesse sendo cometido ou criminosos sem punição. Já deu para perceber a importância que o sr. Amâncio tinha.

Chegar em São Paulo não era tarefa fácil. As pessoas tinham que subir a Serra do Mar a pé, ou melhor, engatinhando porque a montanha era muito inclinada e o caminho tortuoso. Logo, qualquer ser humano que enfrentasse essa viagem precisaria, antes de fazer qualquer coisa, de um merecido descanso. Só havia um probleminha: na vila de São Paulo faltavam muitas coisas naquela época, principalmente camas.

Quem morava por aqui dormia no chão ou numa espécie de rede. Com a chegada de uma pessoa tão importante na cidade, a Câmara Municipal começou a procurar um local onde houvesse uma cama para que o ouvidor pudesse descansar. Foi encontrada uma única cama, que pertencia ao sr. Gonçalo Pires... que não quis emprestar o móvel.

Não adiantou nem ameaçar o dono da cama com palavras de ordem em nome do rei. Ninguém conseguia convencer o sr. Gonçalo. Depois de tanto receber negativas, a Câmara apelou para a força: juntou um grupo de soldados que invadiram a casa onde estava a cama e retiram-na à força. Praticamente um seqüestro.

Resolvido o problema, certo? Nada disso... Depois que o ouvidor saiu da vila, a Câmara foi devolver os pertences do sr. Gonçalo, que não queria receber de volta. Segundo ele, seus pertences estavam diferentes de quando eles haviam tomado “emprestado” e exigiu uma indenização por perdas e danos. Uma perícia foi convocada e constatou que só o lençol estava diferente (leia-se sujo). A Câmara ordenou que fosse lavado e pago um valor referente a um aluguel que compensasse o empréstimo.

Nosso amigo Gonçalo estava irredutível. Continuava não aceitando nem os pertences e nem o valor estipulado. Chegou a se esconder para não receber o oficial do município, que estava responsável por resolver a questão. Certamente nosso amigo queria receber uma indenização bem gorda. Fato é que não se sabe até hoje se ele recebeu ou não esse dinheiro ou se aceitou a cama de volta. Mas deu para imaginar como era a vida sem cama em São Paulo naquela época...

Publicado originalmente na seção Acessa História do programa Acessa São Paulo.

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